Mas o
Espírito expressamente diz. O apóstolo tem transmitido a Timóteo conselhos criteriosos
sobre muitos temas, e agora mostra por que tal cuidado era necessário, visto
ser sensato tomar medidas contra um perigo que o Espírito Santo declara estar
chegando, a saber, que viriam falsos mestres oferecendo suas próprias invenções
fúteis como se as mesmas fossem o ensino da fé, e que, ao transformar a
santidade em observâncias externas, obscureceriam aquele culto espiritual
devido a Deus, o qual é o único legítimo. E nesse ponto tem-se realmente
travado constante batalha entre os servos de Deus e os homens tais como os
descritos por Paulo aqui. Pois, visto que os homens são naturalmente inclinados
à hipocrisia,
Satanás facilmente os persuade, dizendo que Deus
pode ser corretamente cultuado através de cerimônias, disciplinas e coisas
externas. Realmente, sem necessidade de mestre, quase todos têm esta convicção
profundamente arraigada em seus corações. Afinal, a astúcia de Satanás é
adicionada para completar o erro, e o resultado é que em todas as épocas tem
existido impostores que recomendam o falso culto, através do qual a verdadeira
piedade é levada à ruína. Afinal, essa praga traz outra em seu comboio, pela
qual usa a compulsão para sobrecarregar os homens em relação a questões que são
indiferentes. Pois o mundo facilmente permite a proibição de coisas que Deus
tem declarado lícitas, a fim de que seja permitido transgredir as leis de Deus
impunemente. Aqui, pois, Paulo adverte não só a igreja de Efeso através de
Timóteo, mas também a todas as igrejas, em todos os lugares, contra os falsos
mestres que, introduzindo o falso culto e emaranhando as consciências com novas
leis, adulteram o verdadeiro culto divino e corrompem a genuína doutrina da fé.
Eis o propósito real desta passagem, o qual devemos especialmente conservar em
nossas mentes.
Além do mais, para que todos recebessem o que
ele está para dizer, com atenção mais atilada, primeiramente declara que essa é
uma profecia do Espírito Santo, inequívoca e perfeitamente luminosa.
Naturalmente, não há razão para se duvidar que tudo quanto o apóstolo diz é
também inspirado pelo Espírito; mas ainda que devamos ouvi-lo sempre como o
próprio instrumento de Cristo, todavia aqui, num assunto de imensa relevância,
ele particularmente desejava declarar com explicitude que nada prescreveu que
não fosse pela operação do Espírito de profecia. Por conseguinte, mediante esta
solene certeza, ele nos recomenda esta profecia; e não satisfeito ainda,
acrescenta que ela é clara e isenta de toda e qualquer ambigüidade.
Nos
últimos tempos.
Naquele tempo, ninguém poderia esperar que, com a meridiana luz do evangelho,
fosse possível que alguém caísse. Mas isso é precisamente o que Pedro diz [2 Pe
3.3], ou seja, que assim como falsos mestres uma vez perturbaram o povo de
Israel, também perturbarão sempre a Igreja de Cristo. E como se Paulo dissesse:
'Agora o ensino do evangelho floresce, mas não passará muito tempo sem que
Satanás tente sufocar a boa semente com as ervas daninhas." Tal
advertência era útil no próprio tempo de Paulo, para que os pastores e os
demais prestassem cuidadosa atenção à sã doutrina se guardassem de ser
enganados. Ela não nos é menos útil hoje quando vemos tudo acontecer segundo a
expressa profecia do Espírito. Notemos especialmente a grande solicitude de
Deus por sua Igreja, prevenindo-a em tempo hábil sobre os perigos que se
aproximam. Satanás possui muitos artifícios pelos quais nos conduz ao erro e
nos assalta com estratagemas extraordinários; Deus, porém, nos fornece uma
armadura eficaz, porquanto nós mesmos não pretendemos deixar-nos enganar. Não
temos, pois, razão alguma para queixar-nos de que as trevas são mais fortes que
a luz, ou que a verdade é vencida pela falsidade; antes, porém, quando somos
desviados do correto caminho da salvação, estamos recebendo o castigo por nossa
própria displicência e indolência.
Mas aqueles que condescendem com seus próprios
erros, alegam que dificilmente é possível decidir que gênero de pessoa Paulo
está descrevendo aqui. Como se houvesse qualquer propósito na mente do Espírito
para pronunciar esta profecia e publicá-la com tanta antecedência. Pois se não houvesse
nenhuma indicação infalível do que era pretendido por ela, a presente
advertência seria tanto supérflua quanto ridícula. Não ousamos, porém, concluir
que o Espírito de Deus nos assuste sem causa, ou que, quando preanuncia algum
perigo, também não nos mostre como precaver-nos dele. As próprias palavras de
Paulo são por si mesmas plenamente suficientes para refutar essa falsa censura,
pois ele põe o seu dedo naquele mal, contra o qual nos adverte para que o
evitemos. Ele não fala simplesmente, em termos gerais, sobre os falsos
profetas, senão que também nos dá um expresso exemplo do falso ensino, ensino
esse que, ao fazer a piedade consistir de exercícios externos, perverte e
profana o culto espiritual de Deus, segundo afirmei acima.
Alguns
apostatarão da fé.
Não fica muito claro se ele está falando dos mestres ou dos ouvintes, mas
prefiro tomá-lo como uma aplicação aos últimos, visto que prossegue tratando
dos mestres quando os chama de espíritos sedutores. E mais enfático dizer que
não só haverá quem divulgue os ensinos ímpios e corrompa a pureza da fé, mas
também dizer que não faltarão alunos que sejam atraídos para suas seitas. E
quando uma mentira aumenta sua influência, ela avoluma as dificuldades. Mas ele
não está falando de um erro trivial, e, sim, de um mal terrível, a apostasia da
fé, embora à primeira vista não pareceria ser tão mal assim à luz do ensino que
ele menciona. Pois como é possível ser a fé completamente subvertida pela
proibição de certos alimentos ou do matrimônio? Devemos, porém, levar em conta
uma razão mais ampla, ou seja, que aqui os homens estão inventando um culto
divino pervertido para a satisfação de seu ego; e ao ousarem proibir o uso de
coisas saudáveis que Deus permitiu, estão alegando que são os mestres de suas
próprias consciências. E tão logo a pureza do culto é pervertida, não permanece
nada íntegro e saudável, e a fé é completamente subvertida. Por isso, ainda que
os papistas debochem de nós, ao criticarmos suas leis tirânicas acerca de
observâncias externas, temos consciência de que estamos lidando com um assunto
seríssimo e importantíssimo; porque, assim que o culto divino é contaminado com
tais corrupções, a doutrina da fé é também subvertida. A controvérsia não é
acerca de carne e peixe, ou acerca das cores preto ou cinza, acerca de
quarta-feira ou sexta-feira, e, sim, acerca das más superstições dos homens que
desejam obter o favor divino por meio de tais futilidades e pela invenção de um
culto carnal, fabricando para si ídolos no lugar de Deus. Quem ousaria negar
que fazer isso é apostatar da fé?
Espíritos
sedutores.
Ele está se referindo a profetas ou mestres, aplicando-lhes esse título porque
se vangloriavam de possuir o Espírito, e ao procederem assim estavam causando
impressão sobre o povo. Em geral, é deveras verdade que todas as classes de
pessoas falam da inspiração de um espírito, mas não o mesmo espírito que
inspira a todos. Pois às vezes Satanás passa por espírito mentiroso na boca dos
falsos profetas, com o fim de iludir os incrédulos que merecem ser enganados [1
Rs 22.21-23]. Mas todos quantos atribuem a Cristo a devida honra falam pelo
Espírito de Deus, no dizer de Paulo [1 Co 12.3]. Esse modo de expressar-se teve
sua origem na reivindicação feita pelos servos de Deus, a saber, que todos os
seus pronunciamentos públicos lhes vieram por revelação do Espírito; e, visto
que eram os instrumentos do Espírito, lhes foi atribuído o nome do Espírito.
Mais tarde, porém, os ministros de Satanás, através de uma falsa imitação, como
fazem os símios, começaram a fazer a mesma reivindicação em seu favor, e da
mesma forma falsamente assumiram o mesmo nome. Eis a razão por que João diz:
"provai os espíritos, se realmente procedem de Deus" [1 Jo 4.1].
Além do mais, Paulo explica o que quis dizer,
acrescentando: e doutrinas de demônios, o que equivale dizer: "atentando
para os falsos profetas e suas doutrinas diabólicas". Uma vez mais digamos
que isso não constitui um erro de somenos importância ou algo que deva ser
dissimulado, quando as consciências dos homens são constrangidas por invenções
humanas, ao mesmo tempo que o culto divino é pervertido.